O consultório. Ou a pastelaria.

Não sorrio muito. Mas não o faço com maior frequência por falta de oportunidade. Já me ri do meu nariz, dos meus dedos dos pés, do sinal no cotovelo esquerdo. Foi gracioso. Descobri o mínimo monte mascavado numa terça-feira, batendo com o braço direito, este traidor, na quina do gradeamento da varanda.  Era hora de jantar. Quase caí. Vivo num primeiro andar. Não teria dado para grande coisa. Já me ri algumas vezes, só que já esgotei as partes de mim das quais consigo gargalhar. Sou  capaz de ser um tipo solitário. Por favor, poupe-me ao "típico". Mesmo que o seja, poupe-me. Pelo menos até ao terceiro café do dia. Depois conversamos. Sim, sim, pois. O meu cão chama-se Tintim. O meu gato chama-se Nico. Só se dão bem à lareira. O lume chega para os dois. A comida também. Aliás, a comida chega para os três. Eu também gosto de comer. Ora bem, mais, deixe ver. Na semana passada fui ao dentista. Tudo bem. Gosto muito de mel, mas tenho medo de abelhas. Comer-lhes o mel é uma vingança. Às vezes penso nisto e sinto-me mal.
Ontem? Muito bem. Ontem, fui lá experimentar a máquina. Disseram-me que seria uma boa substituta. Não me disseram para quê, mas garantiram-me o agrado. Fui lá. Pois, não sei. Continuei na dúvida. Continuo nela. O que acha que estou aqui a fazer? Paciência, paciência. É o que mais me pedem. Que é mesmo assim, que tenha paciência. Não tenho eu tido outra coisa. E se de novo a varanda? Depois tenham vocês paciência.
Que raio de pergunta. Então, essa gente são os filósofos, umas serpentes vadias. Atravessam as estradas, atropelam para aqui e para acolá. Eu só sei que fiquei na dúvida. Como é que eu hei-de dizer? Era uma máquina, pois era. Era um aparelho de contar histórias. Contou-me duas. Era uma vez um santo. Belo dia, a sacro figura pestanejou com o pecado da beata. Uma beata maiúscula. Ora, uma beata maiúscula resulta em paróquias circulares. Sendo todas as paróquias circulares, beatas maiúsculas resultam sempre. Acha isto normal? Espere. Como resulta uma beata? Sei lá eu. Urge deter interrogações e enunciados mancos. Devemos ser médicos das questões. Mas o que acha que estou aqui a fazer?
O prato de arroz tingia-se de dourado e ia a casa o rei. Ninguém fazia anos. Não podiam estragar as sestas arquitectadas em dias ventosos. Na portada, o papão guardava uma dose de coisas patetas com medo não sabiam de quê nem para quê. A verdade era que a situação se alterara. Restava-lhes o espanto, o ciúme e, por lotaria, a feliz indiferença. O fim era ali. Está a ver a situação. A máquina estava avariada, com certeza. Tenho sede. Não é uma metáfora. Tenho mesmo sede. E alguma fome também. Mas não muita. Era uma vez, era uma, uma vez, era. Isto era a máquina. Pode calcular. Fique com estas gravações. Eu não sou obsessivo, sou meticuloso. Continuo, continuo. Só um momento. É que não vejo problema nenhum em usar o gravador. Já lhe disse que gosto de naufrágios? Gosto. Gosto muito. E de náufragos também. Só não gosto de escorbuto. Está-se a rir de quê?

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