Ou a noite está demasiado quente

Nessa época, tu sabias medir o tempo em bicicletas e, amiúde, dizias-me o medo. O medo está para nos embrenharmos nele e fazer dele menos medo e mais experiência, atiravas. Eu levava pernas ao peito, mãos aos joelhos, cabeça ao poço dos membros atados e ecoava o medo. O medo é um sugador de vontades, repetia. Aí, com um dedo só fazias mexer a roda da yeah-yeah estendida na terra. Até cessar o movimento, rendíamo-nos à hipnose do circuito metálico e ruidoso. Finado o último som, sorrias. Eu não sorria. Tentavas desfazer violências na minha boca pouco aberta pelos dias. Eras meu amigo. Muito mais do que eu era teu. Eu não sorria. Nessas alturas, com frequência levantava-me, dedicava os meus olhos aos teus por segundos. Ou seriam horas? Caminhava chutando pedras até ao riacho. À primeira que conseguia afundar, voltava a sentar-me, fitava o regato, não me recordo se pacientemente ou servilmente. Aproximavas-te sempre. Nunca me prescindiste. Dobravas as calças até onde previas que a água lhes não chegasse. Tenho de andar sempre descalço por tua causa, dizias-me tu, e entravas no rio. Miravas e remiravas, remexias os seixos talvez para lhes escutares as melodias, pensava eu, no início. Miravas e remiravas, agias. Deixavas o regato com as mãos em concha e, à minha beira, mostravas-me a primeira pedra. Eras uma nascente transbordando delicadezas, nessas ocasiões. E eu sabia que comunicávamos um código que de outra forma seria indizível. E nós sabíamos que esses assomos de inundação se demorariam nos nossos peitos de água por dias. Ou seriam anos?

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