Futurar

Se na água lenta afundassem as mãos
se da água longa tivessem experiência
enxergariam o lodo - a placenta inventada
dos peixes, pois saberiam das violências
das coisas íntimas e aquela hora nímia
(não mais que elementar)
em que as correntes se fundem
confiaria presente e fala e milagre
às pontas dos dedos de mãos bastantes
para dizer: não esqueçamos, chove hoje
como quem crê.


* A primeira frase é de Paulo Melo Lopes.

Simão


Do fundo do coração do fundo do poço do fundo
do coração do poço do fundo do poço do coração
digo-me Simão, masculino Simão, digo-me: não
te apoquentes demasiado. O  suficiente só
para dar vazão à circularidade fátua
ao compasso das sementeiras berrando:
quem lavra constrói, Simão, masculino Simão.
Varre os dias varre os dias varre vãos
os dias de folhas a estalar nos pés gizando
feridas na seiva seca na clorofila extinta.
Eis. Eis o êxtase do diabo desejando-te troféu.
Extenua-te nessa ingratidão de seres Simão
aquilino anão, varredor de dias de vento.

Colina impossível acima atiro ao topo.
Empurro-me argola ponta de espada
a espreitar vassoura de bruxa avanço
Simão, símio Simão, ao cume. Sou olhos aí
e enxergo uma terra de cultivo estrumada
por um corpo de míngua entre vários. O meu.

Querem o céu

Querem o céu, a mística mansão
Da alma.
E, se estivessem lá,
Queriam a terra, a sórdida morada
Da raiz.
Mas é o céu que lhes diz
Eternidade,
Verdade,
Santidade
E descanso.

Assim se pode mistificar
A preguiça,
O pecado,
A mentira
E a transitória vida natural.

O grande tecto azul, porém, não dá sinal
De acolher o aceno.
Afaga as nuvens, e da luz solar
Faz o dia maior ou mais pequeno.


Miguel Torga Cântico do Homem, Coimbra Editora, 1950

Ou a noite está demasiado quente

Nessa época, tu sabias medir o tempo em bicicletas e, amiúde, dizias-me o medo. O medo está para nos embrenharmos nele e fazer dele menos medo e mais experiência, atiravas. Eu levava pernas ao peito, mãos aos joelhos, cabeça ao poço dos membros atados e ecoava o medo. O medo é um sugador de vontades, repetia. Aí, com um dedo só fazias mexer a roda da yeah-yeah estendida na terra. Até cessar o movimento, rendíamo-nos à hipnose do circuito metálico e ruidoso. Finado o último som, sorrias. Eu não sorria. Tentavas desfazer violências na minha boca pouco aberta pelos dias. Eras meu amigo. Muito mais do que eu era teu. Eu não sorria. Nessas alturas, com frequência levantava-me, dedicava os meus olhos aos teus por segundos. Ou seriam horas? Caminhava chutando pedras até ao riacho. À primeira que conseguia afundar, voltava a sentar-me, fitava o regato, não me recordo se pacientemente ou servilmente. Aproximavas-te sempre. Nunca me prescindiste. Dobravas as calças até onde previas que a água lhes não chegasse. Tenho de andar sempre descalço por tua causa, dizias-me tu, e entravas no rio. Miravas e remiravas, remexias os seixos talvez para lhes escutares as melodias, pensava eu, no início. Miravas e remiravas, agias. Deixavas o regato com as mãos em concha e, à minha beira, mostravas-me a primeira pedra. Eras uma nascente transbordando delicadezas, nessas ocasiões. E eu sabia que comunicávamos um código que de outra forma seria indizível. E nós sabíamos que esses assomos de inundação se demorariam nos nossos peitos de água por dias. Ou seriam anos?