Nos bilhetes de identidade substituam-se pontas de dedos por línguas

Abraços vezes abraços
vermelhos glóbulos em fainas
demoram-se na língua.

Acto de perder

Não é bem uma esperança
antes se trata de uma vontade
desses ombros telheiros
para humanidades e outros
fenómenos da casca ao cerne.

Acontece que são as árvores
a perder as folhas e não
as folhas a perder as árvores.
Singular Tempo Plural

Em Outubro passado
saí à noite com a cunhada de um amigo
o que me pareceu sexualmente correcto.

Tratava-se o espécime de alguém bem alinhavado
o que também me pareceu sexualmente correcto.

Levei-a a jantar a um bonito restaurante
trocámos umas ideias
trocámos uns olhares
engraçámos com os pontos em comum
e tudo estava a correr bem.
Falava eu das castas e tradições
do vinho que bebíamos
quando, sentindo-lhe o bouquet
ao dar um gole em grã seigneur
o estafermo do líquido
me entrou para os pulmões, circunstância infeliz
que provocou de imediato
imponente e borrifada engasgadela
mesmo ali à frente da carinha dela
o que francamente me pareceu
sexualmente incorrecto.

Mais tarde, quando já tinha
a algum custo recuperado o élan
fui com ela dar uma volta pela marginal norte.
Durante o passeio,
disse-me que estava a gostar muito
de ouvir os Roxette
o que me pareceu sexualmente correcto.
Depois abordou a política.
Explicou-me que já não era
mas que tinha sido daquele partido
que agora, por sinal, está bastante partido
no mau sentido do termo.

Foi logo a seguir que me falou do mar.
Disse-me que o mar, poucos quilómetros adiante
era lindo!

Eu estava já a afiambrar as ideias
e não tardava muito ia entrar naquela fase
em que nos armamos em carapau
e em que o próprio pirilau
até parece dizer yes
mas naqueles poucos quilómetros
que faltavam para o sítio-turquesa
onde o mar é lindo
o carro ficou sem bateria.
Ainda esgrimi, atrapalhado
um incómodo diálogo com o démarreur
mas o carro, pois sim, já dali não saiu
o que, convenhamos
foi de todo sexualmente incorrecto.

Passou-se uma semana, um mês
sucederam-se os outubros
e, talvez pelo que se passou naquela noite
mas creio que não, as nossas vidas
levaram rumos diferentes.

Através do tempo
quando levo alguém a ver
o sítio onde o mar é lindo
fico com a sensação
de que é sempre um pouco depois.



Tela


Descem pelas colinas os animais que sonhas
São grandes ruminantes fulvos
e descem cheios de sol
sobre as relvas

Ao vento erguem e à claridade as cabeças
Dir-se-ia serenos compreenderem muito bem
o céu pintado de azul e água

Depois seguem. Descem mais
Devagar chegam aos charcos
onde bebem
saboreiam uvas
onde se deitam
certos de que os vais achar belos
e perfeitamente integrados na paisagem



17.


Para te ajudar na medição das despedidas
nessa insistência tua em saber
qual a mais longa, qual a mais acre
posso dizer-te que existem as com buganvílias por perto
no apaziguamento dos quintais; existem
as solarentas
testemunhadas pelas encostas de vinhas; existem
as trucidadas pelo ferro quente dos comboios
e existem aquelas
em que apenas, por instantes, pousamos a mão
no cabelo de quem amamos



Daniel Maia-Pinto Rodrigues

in O Afastamento Está Ali Sentado, Quasi Edições, 2002

Snapshot


Entre a romã meio comida
e o que de mundo há
na sua fotogenia
rebenta um fotógrafo

[espera] afinal é um homem
amando sua romã ao acaso.
[espera] O homem perde

o barco – ama objectivamente
suas margens na vaga
competência da necessidade.
Aberração, n. Qualquer desvio de outra pessoa relativamente aos nossos hábitos de pensamento, quando ainda não se lhe pode chamar demência.

Absurdo, n. Uma afirmação ou convicção manifestamente contrária à nossa própria opinião.

Ajudar, v.t. Criar um ingrato.

Apaziguar, v. Chamar «cãozinho» a um buldogue quando este se encontra firmemente agarrado à nossa retaguarda.

Aplauso, n. O eco de um lugar-comum.

Cacarejar, v. Celebrar o nascimento de um ovo.

Culpado, n. O outro indivíduo.

Destino, n. Aquilo que autoriza os crimes do tirano e serve de desculpa para os fracassos do idiota.

Difamar, v.t. Mentir acerca de outra pessoa. Dizer a verdade acerca de outra pessoa.

Espelho, n. Uma superfície plana de vidro, na qual é encenado um espectáculo efémero para deleite das desilusões do homem.

Estrada, n. Uma faixa de terreno através da qual podemos ir de um sítio cansativo para um sítio inútil.

Feitiçaria, n. O antigo protótipo e precursor da influência política.

Imaginação, n. Um armazém de factos gerido em parceria pelo poeta e pelo mentiroso.

Incenso, n. No contexto religioso, um argumento dirigido ao nariz.

Intimidade, n. Uma relação entre dois tolos, providencialmente atraídos para a sua mútua destruição.

Qualificação, n. Ser primo do alfaiate do Presidente.

Quantidade, n. Uma boa substituta da qualidade quando se tem fome.

Raciocinar, v.t. Pesar probabilidades na balança do desejo.

Realidade, n. O sonho de um filósofo louco. Aquilo que permaneceria na copela se procedêssemos à análise de um fantasma. O núcleo de um vácuo.

Reminiscência, n. O grande luxo dos infelizes.

Sentimento, n. Um débil meio-irmão do Pensamento.

Voto, n. Instrumento e símbolo do poder que permite a um homem livre fazer figura de parvo e destruir o seu país.


Ambrose Bierce
in Dicionário do Diabo, Edições Tinta-da-China, 2006