O Pão

Juro que aqui estamos sentados
julgo que mo disse ainda hoje ao despertar
uma mesa diante dos pés
uma manta acolhendo faz frio

Juro que aqui estamos sentados
o sofá dói a esta hora de domingo

Temos um amor e está bem
podemos deixá-lo na mesinha do corredor
ou no balcão da cozinha junto do pão
e não tem erro entrar e sair de casa
é passar por ele

Logo de manhã é barrá-lo na fatia de pão
pedir um bocadinho mais destas migalhas 


Hugo Milhanas Machado, As Junções, Artefacto, Lisboa, 2010

8 comentários:

A disse...

Um poema comestível. Gostei.

Fez-me lembrar este interessante colectivo: http://www.tiagosousa.org/pao

Ana Jerónimo disse...

Interessante, de facto. Não sabia da existência deste Pão; ainda bem que o partilhaste; o pão é bom. Simultaneamente possante e subtil; envolvente. Pondo os adjectivos de lado, é «uma manta acolhendo».
Conheço pouco do trabalho de Tiago Garcia. Tenho gostado do que tenho ouvido. E agora deixo-te aqui outro poema do Hugo Milhanas Machado, em As Junções, que é um livro que apetece abrir; é que tem coisas assim:

Estranhamento

A vida de repente significa
numa imagem que já está rota
voltar atrás e fazê-la outra vez
ou mais uma vez mas agora

A vida de repente eis que significa
na parte do rosto que chora
se nos cala a guapa melancolia ou
muito somente e só depois
se só nos lembra a vida de repente
e a recordação que havia já está
e ali tocou onde havia
e ninguém se lembrou de beijar

Eis que a vida de repente significa
numa imagem que já está rota
ver-te a face despertar
mas não basta só cantar nem o canto
fosse uma melodia de repente
fosse música súbita e urgente
a medida da imagem que já está rota

ou voltar a fazê-la isto é
rememorar a vida e fazê-la de repente

A disse...

Brilhante a frase "uma manta acolhendo faz frio". Ilustra bem o poder da vírgula, ou da sua ausência, como leme do sentido do poema.

Estou a gostar muito das "junções". Tenho de ver se encontro o livro à venda, para conhecê-lo pessoalmente.

A disse...

Ainda voltando ao tópico...por mera coincidência acabo de ler este poema do Daniel Faria, que termina exactamente onde começa o do Milhanas Machado:


Tornei-me peso
Rochedo respirando para dentro nos líquenes interiores
Peso da ceguez nos meus olhos contaminados
Das pupilas inquinadas pelas pedras interiores


Tornei os olhos muito impuros por milhares de imagens
Pedras internas golpeando-me
Tornei-os incapazes das visões
Das visões interiores e por fora
Da aparência
Afoguei os olhos no meio das águas
Um peixe cheio de canais mudando as suas cores
Doendo-me muito nos olhos cobertos
Por escamas


Quis abrir os olhos no meio das águas no meio das imagens
E estava cego, estava coberto de fantasmas
Quis respirar com as mãos na garganta, guelras acesas
Porque as imagens não tinham rostos nas janelas


Elas fecharam-se sobre os meus olhos, em cardume,
Elas apontaram-me aos olhos as antenas interiores
Elas propagaram-me um modo cerrado de não ver


Dinamitei depois tudo o que em mim tinha forma de aquário
Um aquário sem nada dentro dele, dinamitei de vazio
Aquilo que na transparência tinha material explosivo
Uma força concreta, a capacidade de um cenário
Devastado


E dinamitei o vazio e encontrei um peso
Humano que não se afundava:
Era um milagre como Lázaro vindo para fora!
Era um homem que nos levava por um caminho desconhecido para casa
E que partia o pão. E eu vi que era ele
Que partia
O pão.

Ana Jerónimo disse...

Curiosa engrenagem; multiplique-se o pão.
Multipliquem-se os bons poemas ou os poemas-poemas, que também eles podem ser pão.

De facto, vale a pena As Junções. Espero que dês de caras com ele por aí.


Ali em cima,disse Garcia não sei por quê.Sousa, Tiago Sousa era quem queria referir. Engano meu.

josé carolina disse...

Quisera eu tê-lo escrito ao meu amor.

luís filipe pereira disse...

Excelente escolha,
notável o modo como o poema entretece o pão amantivo.

grato pela partilha

Hugo Milhanas Machado disse...

Ana,
agradeço a leitura.
Hugo