A discrição era uma próxima vez

Foi numa hora qualquer de um dia qualquer. Fazia um frio qualquer, desses para que qualquer cachecol serve. Calhou o carvão esmagar-se na pele, junto ao pulso esquerdo. Soprou um sopro frouxo. Salivou uma saliva breve, inicial. Sacudiu a turfa. Cedeu fraco interesse à situação; dela só apreciava o cheiro mimosinho e pequenino. Nunca foi de se dar com diminutivos, muito menos com a repetição deles. Concentrou-se no papel de parede, percorrendo os seus motivos curvos, misto de caracol e labirinto: caracolinto, labiricol. Tanta redondeza pô-lo tonto. Cambaleou vinte e sete anos para trás; dava aos pés e aos braços girando sobre si mesmo, sorriso estampado e gozado ao som de Dona Margarida, a professora primária que vivia por cima da papelaria do senhor dos óculos redondos no 2º esquerdo do prédio de quatro andares de azulejos verdes na esquina com a Barreto Ávila. Pára com isso rapazote, periquiteava Dona Margarida, e uma melopeia jorrava do biquinho sorridente do menino rapazinho rapazote. Uma picada começou a laborar, outra picada e outra e outra e outra e foram-lhe devolvidos os vinte e sete anos. O papel permanecia na parede, a saliva continuava a ser salivada. Mas a picada transformava-se em ferroada, lasca, farpa, ferroada, lasca, farpa. A dor fê-lo perder o desprezo por fitar os pulsos. No direito, nada. No esquerdo havia um motivo de festa, mas o ex-rapazote não alcançava o facto. Só enxergava o círculo mais pequeno do alvo, lâmina de guilhotina a aproximar-se, insinuando-se companheira. Porque é que não fui logo dormir? Devia ter ido dormir. Porém, achava-se ainda na sala. Quando se chega a casa após uma noite de muita conversa, ir para a cama não é mais do que estupidez. Os diálogos ainda chocalham. A cerveja era boa, ainda tinha bebido mais uma. A conversa era boa, ainda tinha bebido mais uma. Deitar-se seria assumir o abandono. A poltrona setecentista não se calava, a sua ladainha de salão parisiense começava a magoar. Jurou não se aninhar mais no aconchego carmesim. Entregar-se à cama, não. Todos os feitiços se rebelavam perante o mago com carvão alastrando-se punho acima. As veias salientes eram itinerário exemplar para a turfa reveladora. A discrição era uma próxima vez. Insuportável.

Mão morta, mão morta, quem bateu a esta porta? Admite os esboços deslizantes. Responde, permite-te caligrafado. As saudades visíveis na tremura da mesa denunciam-te. Usufrui a queda do copo meio bebido na berma da secretária. Deixa-o tombar. Não é uma secretária, deixa a técnica cair. É uma mesa. É uma mesa com um copo meio bebido na berma de folhas de plátano, de carta, de máquina, da papelaria do senhor dos óculos redondos do 2º esquerdo do prédio de quatro andares de azulejos verdes na esquina com a Barreto Ávila. Mão morta, mão morta. Quem baterá a esta porta? Diz-lhe, escrevendo, não te demores aí, a minha morada é a mesma.

7 comentários:

Zaramateka disse...

Gosto muito Anita. Virei mais vezes.

Ana Jerónimo disse...

Mas que bom:) Bem-vinda.

A disse...

Ana, olá.

Li como se fosse um copo meio bebido na berma desta folha de cristais líquidos...mas nem por isso meio vazio.

~A

Ana Jerónimo disse...

Olá, A.

Obrigada pela leitura e pelas palavras; sabe bem saber que o texto se deu mais a ser bebido do que ao vazio.

A disse...

uma experiência:
http://vistoaestaluz.blogspot.com/

luís filipe pereira disse...

Magnífica prosa: eis, em sentido merleau-pontiano, a prosa do mundo, uma morada literária a que voltarei.
grato pela partilha

Ana Jerónimo disse...

Luís Filipe,

grata eu, por ter entrado e por ter deixado o seu comentário generoso.
Grata por ter partilhado a sua impressão, concedendo(-me) assim uma nova perspectiva sobre este texto.