Dois uns num espaço sem nome

Sicrano – Se eu cair redondo não faço mais que o meu dever. Concluído o processo de cicatrização, ponho-me como erva-milhã, em marcha horizontal.
Beltrano – Cair redondo é um processo? Quais são as fases? Quero deslindar isso antes de saber da cicatrização.
Sicrano – Cala-te.
Beltrano – Sublinha-se a técnica quando a naturalidade é coisa de antes, coisa bebida e cuspida.
Sicrano – Cala-te.
Beltrano – Também podes vir a ser corpo restante numa estação de correios manuseada à bruta.
Sicrano – Manuseada à bruta a estação de correios? Ou o corpo restante?
Beltrano – Ambos. Tu.
Sicrano – São as coisas como são. Nada há a exclamar.
Beltrano – A reclamar trajectórias coladas na parede, postais das cidades onde se esteve à laia de…olha que bonito, como eu já vivi. Eu já vivi muito.
Sicrano – É a prova rugosa, é o toque melancólico, é. Pega neste Budapeste.
Beltrano – E não se passou das cidades. Que tolice.
Sicrano – Tanto adjectivo. É a solução. Disfarce perfeito para as bolhas, que se fossem nos pés ou nas mãos valiam.
Beltrano – Mas não são. Nem nos pés nem nas mãos. E não é por pés e mãos serem inexistentes em ti.
Sicrano – Tristeza.
Beltrano – Haverá um dia em que deixarei de vir até aqui, de entrar aqui, de ler aqui, de fumar, de mandar vir, de gostar. Penso: quando será esse dia? Porque acontecerá. Mesmo agora, exponho-me e tenho medo. Tenho medo.
Sicrano – Tenho medo. É possível que o dia em que deixes de vir aqui não dependa de ti. Não podes esquecer isto.
Beltrano – Poder, posso. Mas não devo. Vamos vendo.
Sicrano – Vamos vendo e tendo medo.
Beltrano – Só venho e fico aqui, porque está pouca gente. Não me daria ao trabalho se as claques bichanassem agora.
Sicrano – Não tens paciência para esse modelo de abanar de leques. Eu sei.
Beltrano – Venho em descanso só meu. Com discrição só minha. Sem fitas coloridas, sem cinema. Desse gosto; é preciso é que a sala esteja vazia. Pouca fulanice. Enfastia-me que me vejam.
Sicrano – Uma pessoa precisa de respirar enquanto queira. É muito pouco, é minimalista até. Mas não deixa de ser. Faço por perder o menor tempo possível na hypócrísis. Estou a gastar latim à toa?
Beltrano – Cala-te.
Sicrano – Já não tinha esta paz há algum tempo e está a saber-me bem, bem, bem. A independência é uma coisa que vem sempre a calhar. Então agora…quase grito.
Beltrano – Não o faças. Cala-te.
Sicrano – E o latim?
Beltrano – Esse não morreu já?
Sicrano – Estás a precisar de viajar.
Beltrano – Que disparate. Vais comigo?
Sicrano – É possível. Isto está a encher.
Beltrano – Pois está. Quase grito.
Sicrano – Que lata.
Beltrano – Desculpa.
Sicrano – Tudo bem. Dá-me licença, eu agora deixo-te aqui a gritar e vou morrer para outro lado.
Beltrano - Abyssus abyssum invocat. Compreendo.
os olhos na fé de um teatro qualquer