ulular FM ou um silêncio ou um desejo ou um silêncio ou um desejo ou um silêncio FM

um desejo ouvido
na frequência da rádio
pirata de nascença

é um silêncio FM
vadio numa geração

de gritos
guerreiros: vibram

a versatilidade
de um acordeão

sob a botânica de papel
de uma festa pop
ular.

Pretérito imperfeito

Uma vez disseste-me: a morte é uma máquina de escrever. E eu acreditei. Fui comprar uma máquina de escrever. Queriam pronto pagamento. O dinheiro não chegava. Exclamei merda. Raio de merda para se exclamar quando se quer morrer e não se pode pagar a pronto. Para que vejas o ponto a que cheguei. As minhas exclamações são uns balões. Uns balões muito vazios nos últimos tempos, muito pouco derradeiros, fazem justiça nenhuma ao nome. Pagar a morte a prestações é para malucos. Se há coisa que eu não sou é maluco. Enfim, vim embora respirando e cá estou. Aqui ao meu lado, ao meu lado não, à minha direita está uma rapariga parecidíssima contigo. Curioso contar-te isto agora, Lídia. Se te visse neste instante, se te encontrasse não te diria nada. Podia avistar-te do outro lado da rua e não a atravessaria para te falar e sorrir. Sou terreno fértil para o disparate. Sei. Tanta coisa que sei, tanto mistério para. Olha um balão.
Quero continuar, quero encher o que há de espaço livre e alcanço zero. Não é por inexistir matéria que permita o agasalho. A matéria está aí. Aí é um lugar a que ainda não cheguei, um lugar onde já estive e não me lembro. Como não me recordo do sítio onde deixei o casaco. Está contigo, Lídia? Eu tinha frio e não vesti o casaco. Ignoro se o não vesti por achar que não o merecia ou porque isso significaria ficar. Dar-me ao casaco seria dar-me ao conforto. Entende, Lídia. Sabes como é, tenho viços no pé esquerdo e movo o tronco à direita. Tenho um mapa para cumprir sem que me apeteça levar almoço para a viagem. Tenho frio e não visto o casaco.
A minha caligrafia continua desalinhada, só que assume um desarranjo diferente do habitual. Talvez notes a diferença. Desalinho por desalinho prefiro o antigo. Para que vejas o ponto a que cheguei. Já disse isto. Desculpa. Ontem fui ao sótão. Fui ver aquela frestazita de luz por entre as telhas. Tão linda, tão amável, tão airosa. Linda. Fresta não é epíteto; tinhas razão. É um raio muito pequeno a romper lá em cima. Gostei de estar ali, pude treinar o tacto. Já não desconfio dele. Ás tantas ainda começo a acreditar no tacto. Confesso, ainda assim: redijo estas letras que quero tuas e tenho medo que a qualquer altura falhe a luz. O tacto, Lídia. Prometo.
Hoje dói-me a cabeça. Dói-me muito a cabeça. Não bebi ponta de álcool e é como se tivesse aberto a boca a barris. E está um dia feio muito bonito e não posso aproveitá-lo com as honras que merece. Neste momento, se te visse na rua, acenava-te. E dava-te um abraço. Sempre gostaste muito de abraços. Sempre os deste muito a quem tos chamou. Não os esbanjas, mas a tua atenção lança-te com veemência doida em torno dos que encontras na disposição e na querença de abraços. Mas, com rigor, agora quem te abraçava era eu. Enlaçava-te a ti, Lídia, que não te magoas com esta minha mania de aplicar alcunhas a tudo, que não amuas por te chamar Lídia. Tacteava-te a ti, que conheces as máquinas de escrever para lá do dicionário, Lídia.

Fruto preso à lupa

Na morte entorpecida a um canto da caixa
deixo um dos braços e mudo de chão.
(O vértice do mundo silencioso, agora.)

Detenho-me em auscultações, preparo rotas
premedito à lupa do peito muito atado.
Acorda o sossego um clarinete à revelia

vagas volúveis desembaraçam notas:
desvendam-me o fruto preso em nós náuticos.
(A maresia do mundo inodora, já.)

Retorno à intersecção de dois planos rugosos
desataviados e vivos na seiva muda do chão.