Lado esquerdo

Estava eu e a minha sombra
sentadas à mesa onde perdemos
as oportunidades
por nos termos embriagado

e reparámos na nossa banalidade
e pela primeira vez não nos rimos.

Focámos o casal aproxiamando-se
ao nosso lado
convidámos-lhe as penumbras
a beber dos nossos copos, recordo
isto e comovo-me e quase esqueço

a dualidade de redigir sombra
a vulgaridade dos copos
ou talvez deva dizer:
a vulgaridade de redigir sombra
a dualidade dos copos

ou talvez deva dizer
pela primeira vez: ainda.

Pequena primeira pessoa


Eu tu ele nós vós eles a esta hora despimo-nos
de uma saia justa de uns sapatos justos
de uma formatação tão in e justa como uma ideia
de futuro - um depois de amanhã quente
e malhado: um gato, portanto, num regaço
medrando perseguições a almas dos bosques.
De dentro do oco do tronco que habitamos (nada
de ilusões: um tronco não é matéria dada a ecos)
Gato, Sapato, Fazedor de fatos, Construtor de horas
todos tão certos quanto advérbios de modo
que nos preciosíssimos temperos profissionais
esquecemos a verticalidade dos sons e enrolados
nos quedamos em prosaísmos a um grau negativo
e cigarros nas varandas a morrer de frio.
Olá, fotografia. Olá, garfo. Olá, gato. Olá, poesia. Olá, telefone. Olá, pulmão. Olá, primavera. Olá, Joana. Olá, post. Olá, árvore. Olá, chave. Olá, chá.

«É no mais profundo do cadinho humano, aí, nesse lugar paradoxal, onde a fusão de dois seres que realmente se escolheram um ao outro restitui a tudo quanto existe as perdidas cores do tempo dos antigos sóis, nessa região onde, todavia, também impera a solidão, mercê de uma dessas fantasias da natureza que permite que, em torno das crateras do Alasca, continue a haver neve sob as cinzas, é aí, precisamente, que eu, há alguns anos atrás, pedi que se procurasse uma beleza nova, a beleza “exclusivamente encarada para fins passionais”. Confesso, sem o mínimo acanhamento, a minha profunda insensibilidade perante espectáculos da natureza e obras de arte que, à primeira vista, me não suscitem aquela emoção física, cuja sensação mais característica é a de uma pena ao vento a latejar-me nas têmporas, capaz de me provocar um verdadeiro arrepio. Não posso impedir-me de estabelecer uma relação entre essa sensação e aqueloutra suscitada pelo prazer erótico, e de entre ambas distinguir apenas uma diferença de grau. Se bem que nunca tenha conseguido esgotar, através da análise, os elementos constitutivos dessa emoção – que deve, com efeito, valer-se dos meus mais profundos recalcamentos – aquilo que dela sei assegura-me que só a sexualidade aí preside. Escusado será dizer que dados estes factos, a tal emoção muito especial a que fiz referência pode fazer a sua irrupção no momento mais imprevisto, e ser provocada por algo, ou por alguém que, de um modo geral, me não seja especialmente caro. É contudo evidente que, mesmo assim, se trata de uma emoção desse teor, e não de qualquer outra, desejando eu insistir sobre o facto de que é impossível uma pessoa enganar-se: tudo se passa, realmente, como se eu me tivesse perdido e alguém, de repente, me viesse dar notícias minhas.»

André Breton
in  O Amor Louco, Editorial Estampa, 1971

Campo gravítico

Uma serpente na terra
desenha um nome

o nome muda de pele
ao ritmo da lua
lua lua lua      o nome

de tanto ser dito
perde as escamas
perde de um peixe

a memória a maré
a surpresa do oxigénio.

(ganir, carpir)


Cento e oitenta degraus profetizam
lágrima e meia (bengala marulhando
missangas e badalos e sinetas)
aos olhos nados. Tortos.

Crendice do tacto no exacto acto
da carne férrea. Cheia.

Isco

Nado fresco - homem
nu de mundo

toca aberta
à mínima sede

púrpura mel asa
por acontecer

No casulo - frustração
de lagarta

ondulação














Uma alegria ter ido ao mar e um bocadinho adentro das palavras.
Uma alegria fazer um bocadinho de callema.

=>cooperativa literária

Autofagia

Comi um pássaro com especial cuidado
nos ossinhos das asas (não aprendi a voar).
Não se come a liberdade          não se come
não se                              a liberdade come
dos meus ossinhos os pássaros seus.

O segredo dos peixes não se esconde em corais

Nem o segredo dos peixes
se esconde em corais nem
a soleira das portas oculta
nos cães a melancolia.
E se nalguns pulmões navega
uma ou outra fragilidade e
se numa ou noutra veia
as ondas ladram sangues
mais vermelhos
é agarrar na boca e dizer-lhe
assim: abre-te ao ponto da vida.

E abrindo-se a boca de espanto
é escancará-la e esclarecê-la:
és vereda de dois rumos, que a vida
(mais que presa) é correnteza.