Travessão

– Para que usas luvas?

– Para esconder a gratidão das mãos.

– O que te incomoda na visão do agradecimento?

– Não adianta saber-me bravo neste sótão amplificado.

– Não estás a responder-me.

– Estou. Não vês?

– Isto é só um recanto no canto da tua virilidade.

– Mas este espaço aumenta todos os dias.

– É o eco?

– Sim.

– Estás arrependido?

– O eco clarifica o oco do meu vigor. Sim, arrependo-me.

– E a naturalidade?

– Mijei-a contra essa parede atrás de ti. Como chegaste até aqui?

– Foram as sombras; guiaram-me.

– Não tens medo?

– Não. Elas é que têm. Receiam que me perca; se isso acontecer ficam sem morada.

– E tu sem companhia.

– Sim.

– E agora, já te respondi?
Imagina coisas que caem como os homens, desenha
mentalmente as suas trajectórias sem a pretensão
de adivinhá-las, porque a morte é uma ciência e a queda
uma abstracção geométrica e o chão um plano demasiado
vasto para que não lhe dediques o tempo e a exactidão.


Poema de José Rui Teixeira

in Para Morrer, Quasi Edições, 2004

Usar o dicionário ou exercer as funções de procurador

Uma palavra branca entra
no quarto como fenómeno.
O homem – estranheza quase
de pantufas, quase de jornal
sobre a mesa comida e lavada
de dentes – pondera o caso
interpela a palavra
e da palavra: mudez.

O homem deita-se, a palavra
segue-o, o homem – repente
quase de revólver, quase de má
notícia sobre a mesa comida
e lavada de dentes – morde
a branca, que permanece branca
ante o homem, que não dorme, vigia
como vigia o jornal, como vigia
as pantufas, como vigia os caninos.

A palavra não nega mordedura
a palavra não nega conforto
a palavra não nega acontecimento
a palavra usa da cor para complicar















a procura.

ou como se sabe (verbo na primeira pessoa do singular) pouco das palavras e se quer e (oh deuses) se procura ficar mais próximo do fenómeno que elas são, fazendo meros exercícios com elas, recorrendo ao vocábulo «ou» frequentemente (oh deuses-parte II: o medo do comprometimento) e usando o mínimo de pontos finais (as palavras na beira de qualquer coisa como acto contínuo)

É ao longe

1.

É ao longe que os sinais se vêem:
são a província do umbigo – grande
lago gelado ao assobio
do mocho, da vénia, da fronteira.

2.

É ao longe a tremura, o impulso
adentro dos músculos – a liquidez
à espera, à espreita, à pena.

3.

Evaporam-se os dentros
da criatura – é ao longe
a foz de uma cidade.

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